Victoria, A Pittoresca (Affonso Lopes de Almeira - 1911)

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Apertada entre a montanha e o mar, prolongando-se pela encosta granítica, subindo tenazmente os morros, pendurando-se dos barrancos, alcandorando-se, enfim, nas grimpas da serra, Vitória, a pitoresca, aparece. A sua casaria branca esplende em frente aos últimos raios louros do ocaso.

E, entre a verdura negra e as manchas pardacentas da rocha descoberta, a cidade parece um grande pássaro branco, que do céu azul tombasse ferido, asas abertas, penas impolutas, à beira da baía formosa. A torre aguda de uma igreja forma-lhe o bico pontudo, voltado para o céu numa ânsia do espaço azul, da liberdade infinita do ar alto, como já com saudades da vida que se lhe esvai. E, para maior semelhança, um bando negro de corvos abre as largas asas serenas, na limpidez da tarde, rodopiando no ar, em vagarosos círculos concêntricos.

Entre o continente e a ilha, o apertado canal move as águas velozes, em direção à barra, como um rio profundo, de leito cavado na rocha; e as manchas movediças dos barcos silenciosos parecem, à noite que cai, outros tantos corvos que voejam junto à água, aproveitando a sombra noturna, para o ataque à presa apetecida.

O céu polvilha-se de estrelas, e a brisa mansa, cheirando às ervas verdes, úmidas já do orvalho, amacia, suaviza a pele, e faz desfazer-se no ar um floco esgarçado de nuvem longínqua.

Súbito, Vitória ilumina-se; e os focos elétricos dos cais, numa reticência luminosa, prolongam os seus raios pela água do estreito, que fulgura, tremulamente.

Da lancha célere, ouve-se já o "tlin-tlin" monótono de um bonde, puxado por bestinhas pachorrentas; e a voz da cidade, a inconfundível voz da cidade, harmonia formada de sons desarmônicos, vem já até nós, como um suspiro abafado.

Aos zig-zags, pela áspera estrada, a pouco e pouco se alargam os horizontes, amplia-se o panorama, até chegar-se, enfim, ao cume rochoso, de onde a vista, embevecida, deliciosamente se perde pela amplidão ilimitada, acompanha a orla branca do litoral, estendendo-se pelo sereno crescente das praias, entrando pelas âncoras e enseadas, saltando, com as vagas espumosas, por sobre os cachopos e os escolhos prolongando-se, preguiçosamente, pela planície azul, até ao meio círculo violáceo, em que o céu se liga ao mar, numa linha esfumaçada e indistinta; seguindo, da banda oposta, o sinuoso curso dos rios, a sucessão ininterrupta de outeiros baixos, pequenas ondas de verdura, que a brisa fresca parece levantar da planície ou perdendo-se no irregular perfil dos montes da grande ilha de Vitória, ou seguindo em baixo, no sopé da coluna granítica, a linha das ruas de Vila Velha, estradas retas de areia branca, batidas em cheio pelo sol...

Ah! felizes olhos que te viram, ó pitoresca Vitória! felizes os meus olhos de artista, que comovidamente te gozaram a lindeza e a graça! E feliz tu, que consegues, toda poesia, toda pitoresca, deixar gravada, na retina dos que te viram, esta deliciosa, esta embevecedora impressão de beleza!

**Affonso Lopes de Almeida**

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